domingo, 19 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - #1


ponho-me a sorver o real a tantos de tal a uma velocidade
única,/ o meu pai está acantonado num silêncio incandescente,/ o meu pai
é um homem desabrido e passa a mão pelo pêlo do cão,/ o real
é uma imensidão de coisas distribuídas pelas várias prateleiras da casa,/

otelo, homero,/ uma canção a entretecer melodias em outras melodias/
corvos azuis, fios de prata. eu estou a sorver o real pela garrafa,/
diz meu pai,/ e a minha infância recupera de uma febre extensa e única,/
o gargalo onde o sorvedouro da vida redemoinha, entre ruas escuras, com árvores,/

em cujos ramos está a claridade de uma cozinha antiga,/ uma cozinha
onde o real é uma galinha degolada,/ tigelas purpúreas,/ sangue coalhado,
um medo indizível a percorrer todas as dependências da casa,/ a paisagem
em frente, onde o edifício da alfândega se recorta e o rio é um turbilhão inenarrável,

juncado de matérias inflamáveis,/ um corso na deriva,/ sendo que a noite amplia
tudo,/ a mulher que passa em silêncios atordoadores, a magnólia que o vento/ arrasa,/
o palácio/ onde as colunatas são deslumbradas sereias para o encanto/
e o enamoramento. aí vi a escuridão e os seus inúmeros terrores, meu pai

não tinha outro lugar para resplandecer senão a treva,/ há dias
em que avançamos lentamente por dentro da memória e a memória ganha
uma aura inqualificável, duas patas para andar, uma pena na cabeça,/
um susto,/ setenta e sete vezes cão e ave na fantasmagoria do sonho/ e do pesadelo.

digo que chovia pesadamente nesse tempo frenético, no vão de escada
guardei uma estrela,/ guardei no bolso do bibe um símile da luz
para que os olhos se habituassem à escuridão,/ meu pai batia as mãos no meu rosto/
no meu corpo,/ e eu vi, vi, os gritos na cabeça,/ os gritos nas têmporas.

vi meu pai abandonar-me à escada íngreme,/ lá longe,/ onde a fonte se chamava
fonte da colher e havia uma envergadura azul sobre as pontes magníficas,/
eu a andar,/ a andar sempre sobre o sem sentido do mundo,/ empédocles, hamlet/
no coração/ numa dívida, uma dúvida. minha mãe/ em frente, ao lume, a aquietar

o desassossego do pai, enquanto sucessivas vagas de pássaros me sobrevoavam
os lábios, embora/ eu nem sequer soubesse cantar. um músculo inesgotável
dobrava-se dentro/ do meu peito, via a mulher a prender o cabelo,/ a puxar
para si o peixe,/ a insígnia,/ todos os lugares onde a perdição é o nome da catástrofe

e uma criança chora,/ aflita,/ e nada pede, senão que a memória do choro
não permaneça no instante de um círculo circuncêntrico,/ na garrafa desarvorada,/
no fluxo do aguaceiro, onde o cão lúgubre rosna a meu pai,/ porque o meu pai é
um animal acossado, a beber, sempre a beber em pulsões exclamativas e intermitentes

e a sorte é a pouca sorte/ e nem um grão certifica a abundância,/ além dos pés/
descalços,/ os andarilhos pés descalços a abrir o real para os ângulos terrestres,/
abrindo, em relâmpagos,/ o temor e o destemor,/ a primeira e a última provação./ pai,
pai,/ eu caio,/ tu cais, nós caímos,/ tudo está a ruir à nossa volta,/ nesta data,/
perfazemos a terceira queda consecutiva, por que me abandonaste.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006



Foto: © de Amadeu Baptista

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