terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 3

a entrada da casa é ínvia/ e lúgubre,/ uma curva,/ e outra,/ e outra,/
adensam a fadiga,/ não há para onde ir quando/ se vai,/ assim,/
com a luz sobre as mãos/ e a boca desvairada/ num lugar sempre rápido
a ratificar o estremecimento./ acendo a pedra e a escuridão é,/ ainda,/

a escuridão do início,/ o mesmo rio,/ íngreme,/ sobre a minha cabeça,/
que tem,/ nas margens/ uma imensidão de luzes que vacilam,/ e homens que vacilam,/
e aves,/ que vacilam. além,/ no desvão,/ as antigas sombras de tudo,/ em frente,/
os mortos,/ que chegam em jorros torrenciais/ de um lugar íngreme,/

como este lugar, e me falam,/ falam/, falam/, até/ tudo o que dizem/ ser
absolutamente inaudível./ o que me dizem os mortos está já dito na noite,/ nos retratos,
nas paredes,/ o que oiço,/ a altas horas,/ vacila entre o estremecimento e a hesitação,/
talvez porque a infância seja lenta,/ ou a respiração seja só um golpe

desenfreado que sucumbe no arco das costelas./ agora,/ à esquerda,/
a escada./ entre subir ou descer/ não há escolha,/ as grandes emoções,/
os mais sensíveis sinais que estouram a cabeça e o coração,/ são um ramal
de sentidos,/ um afluente duradoiro do entendimento./ assim, subo e desço

a escadaria,/ em movimentos irregulares,/ mas precisos/ e,/ no patamar,/ encontro
o rastro de uma devoração,/ o instrumento com que se ergueu o sacrifício
e consumou o crime,/ numa larga bacia azul,/ cheia de água/ ou éter,/
sobre a qual as mulheres ficam a falar entre si em profundos murmúrios,/

escavados silêncios./ o que vejo é impossível ver,/ flutua um corpo
nessa imensidão azul e eu não posso senão soltar um grito
sobre a cidade,/ para depois seguir atrás de uma urna branca,/ uma pequena
urna branca onde estão os restos mortais de alguém que me dizem/

ser meu irmão./ o meu pai rosna,/ hoje,/ para dentro,/ a minha mãe,/ hoje,/
está calada como uma rocha,/ eu,/ hoje,/ rosno como o meu pai rosna/
e estou na casa desabridamente,/ a ver sem poder ver,/ e a riscar,/ nas paredes,/
a fogo,/ a minha dissemelhança entre todas as coisas da terra,/ todas as coisas.

subo ao telhado da casa e vejo a aparição,/ a aparição é uma casa alagada/,
que, sem nitidez,/ me predestina ao desastre,/ voar,/ voar poderia ser
o lenitivo eficaz para a dissipação,/ o momento adequado
para soltar a dor e ir,/ num sussurro,/ fechar a velocidade com que o mundo

entretece,/ na mágoa,/ a amargura./ hoje rosno/ como meu pai rosna,/
faço tudo em profundo silêncio quando estou na memória,/ letra a letra./
tudo vem do início e volta para o início,/ como um novelo a que se puxa
a ponta para que a eternidade se expanda infinitamente,/ sem nunca deixar de ser

eternidade./ agora,/ volto,/ de novo,/ à escada,/ volto,/ de novo,/ à esquerda,/
subo e desço, grumo a grumo,/ os degraus e as sombras,/ projectando,/ também eu,/
sombra à minha volta,/ enquanto rosno por dentro,/ como meu pai,/ e perscruto
a infindável solidão de tudo,/ o que vacila à minha volta,/ a casa,/ o rio,/ as sombras,/

os mortos./ de novo,/ agora,/ a fadiga./ estar parado no centro da catástrofe
é uma vertigem inestimável,/ no arco das costelas a respiração intensifica-se
e a cabeça rende-se ao cansaço,/ rende-se para ver o que não é possível ver,/
mas vibra no olhar como o brilho de uma lâmina,/ ou uma criança/ morta.

in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006



Foto: © de Amadeu Baptista

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