sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 6

o quarto é um oratório,/ entre rezar e dormir encontro escolhas múltiplas,/
sigo as sombras ou sei que as sombras me seguem,/ a noite
é um corrupio de sons pressentidos, nesta hora
chegam da rua todos os mistérios sem nome,/

ou que talvez se nomeiem pelo grito/ obscuro que o vento nas árvores
adensa./ estou só e balbucio o silêncio dos nomes, às vezes
chegam brilhos de um recanto exterior à casa,/ passa um homem,/
uma mulher passa, e sei como a neblina encordoa as pedras,/ com um clarão.

a cama range,/ o meu pai vocifera sobre o tampo da mesa,/ eu faço-me
um corpo para me tranquilizar,/ sempre que o meu pai fala estremeço,/ emudeço,/
as mãos vibram sob o calor dos lençóis,/ o cobertor humedece-me,/
como se eu não chorasse mas as lágrimas se pudessem assim amontoar.

o que é frágil está dentro de mim como coacção inexpugnável,/ as mãos deslaçam-se
e dou início ao voo,/ com as coordenadas certas e o aluvião como preâmbulo
é a uma torre que subo,/ os quintais circundantes,/ assim sobrevoo a infância
e as suas geometrias barrocas,/ os anjos perfeitos,/ como triângulos equiláteros.

ao longe, o rio, de novo,/ é uma faixa roxa e lilás sobre a densidade das casas,/
o rio ferve,/ fumega,/ transparece,/ inflama-se,/ arqueja,/ arfa,/ é,/ de súbito,/
uma película onde se fixam os rostos que prevalecem,/ eu, de noite,/ a subverter
o voo e o desatino,/ o negrume a velar-me, a acompanhar-me a esses rostos

em que mais que o cansaço se entrevê o denso escrutínio do vazio,/ a intensa
confirmação do fim./ passa um homem,/ uma mulher passa,/ a indeterminação pode
unir o que quer que seja,/ quem quer que seja,/ este homem e esta mulher
chegam de lugares longínquos,/ os arrabaldes de um encontro, os passos

dados em busca de um enigma superior,/ alguma coisa que não se entenderá,/
uma herança fulminante para quem não sabe como proceder perante/ Deus.
rezo agora aflitivamente pela salvação da alma,/ o meu pai é um infinito
de altercações,/ eu, nazareno,/  também fui coagido e admoestado, não tenho salvação,/

não vejo salvação,/ o oratório é esta sombra íngreme de beatitude a velar o meu sono./
às vezes,/ quando sonho,/ transito entre um pesadelo e outro,/ os mortos
regressam na enxurrada,/ ampliam lentamente a solidão, / e gritam,/ gritam/
perdidos para sempre na derrogação da luz./

não sei, não sei da inocência,/ afasto-me a chorar/ e o céu
ilumina-se por tanta escuridão,/ acedo retrospectivamente ao espaço
e estou num lugar que não é verdadeiro nem falso,/ um medo
transversal à perdição e à espessa,/ nítida,/ inelutável/ rendição.

sem ressentimentos,/ com a boca justaposta ao frio,/ pai,/
o meu voo é interminável e perfaz uma longa sucessão de intersecções,/
neste ponto sou quem sabe da perversão e da tristeza,/
como nos perdemos da luz,/ e ela ardeu,/ rodopio em torno da torre,/ da lua.

eu faço-me um corpo para me inquietar,/ o rio fende a casa ao meio,/
sobre a mesa está a faca,/ considero essa latência como um salto
no desconhecido,/ a poder de relâmpagos,/ a poder de trovões/ escondo
a cabeça na escuridão e volto,/ volto à vigília para enlouquecer.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006
 

Foto: © de Amadeu Baptista
 

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