terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Pena Agravada

Estou a cumprir pena perpétua.

Na infância, uns filhos da puta rodearam-me
com triângulos escalenos e não pude
fazer mais que emocionar-me. Nesse tempo,
a minha ocupação eram as luzes coloridas e um rio
em que as barcas abrangentes conduziam as almas
para o inferno, sem que dessa escuridão se suspeitasse.
Nos anos cinquenta a miséria absoluta confrontava-se
com um menino inocente, que o alarido dos vizinhos
amedrontava, sendo que alguns deles sangravam dos ouvidos
e dormiam ao relento sob as árvores, e bebiam
até que pelas veias corresse apenas álcool. Com cuidado,
olhava-os nos olhos, a fazer do silêncio um primeiro
recorte obsessivo de palavras, películas vermelhas
que invadiam a nítida frescura do meu pátio.
Estava ali e queria persistir, talvez porque pensasse
que há lugares ilesos um pouco para além
dos gemidos da noite e do chicote
com que a turbulência arrasa certas vidas
que não podem mais que o pão quotidiano,
sobretudo se o desamparo é não o ter.
Agir, por essa altura, era crescer, embora o crescimento
seja uma fortuna inverosímil, que se pega
ao corpo a assinalar o teor que há na dor
de modo mais profundo e explícito, em que a morte
é como um sinal de perigo, mas não exactamente
uma ameaça. Fazia sete anos e era pastor aquando
do passamento da mulher amada, a quem chamei avó
e sei que é um álamo verde nestas margens
em que me reduzo a pó nesta memória
de a lembrar agora a inscrever nas praças do seu tempo
um meneio escandaloso de passar por elas
com os cabelos soltos e a anca em fogo.
Compôs-se então de treva a claridade e aprendi a ler.
Foi-me tormento a escola e o terror
de ter por mestres gente que batia nas crianças
e andava curvada sobre o tempo
que se estendia cinzento sobre os dias,
sem qualquer alegria que a tristeza anódina
dos que perderam para sempre a macieira
mágica. Cheguei a presumir que nos temiam,
sendo as nossas certezas tão escassas
mas tão vociferantes essas figuras
que nos faziam crer que compensava o crime
de nos manterem reféns no estrado,
completamente prontos para a impunidade
de uma régua mortífera nos nós dos nossos dedos.
Mijávamo-nos de pavor pela violência inumerável
da aprendizagem, onde o fulgor coalhava
com notícias do céu tão abstractas
como o facto de sermos navegantes
há tanto tempo que não o lembrávamos.
Até que um dia, já adolescente,
descobri o poder da poesia que, a par com o mar,
aprendi a fitar com imprudência, por serem
revoltosas essas águas em que o dia
e a noite se confundem. Era essa imprudência
o desassombro de ouvir o longínquo e o genesíaco,
com homens e mulheres a recortar-se
da imensidão dos tempos, a cantar a dolência
e o sublime, a invectivar o mistério e a ampliar
o enigma que há entre os enigmas, ou o surto
de sentidos que, num sopro, agrega ao infinito
o infinito, para que haja mais infinito no sentido.
No meu país, então, grassava a guerra
e para os da minha idade só havia
essa promessa como compromisso,
que abarcava a morte pela extorsão
e a posse da terra, e a escravatura
de outros homens em tudo iguais a nós.
Longos anos durou essa aflição, até que um dia
o mais cruel dos meses comportou
a amenidade esperada, dando à paz
um fugaz clarão de expectativa.
Por essa estrada ia a descobrir os gregos
e não tardei a ver com que punhais
trabalha a insídia e aos abutres
se não devem confiar os braços levantados
para a prece comum. Os pobres
estão mais pobres do que nunca e despojado
o mundo pelos roubos que, entre acerto e desacerto,
cada um de nós vai consentindo, por cobardia,
fraqueza, ignomínia. Ainda assim eu quis resistir.
E li mais gregos, e instintivamente olhei o mar.
E fui, contra a corrente, nessa corrente
de vozes subterrâneas e ventanias densas
que me tornaram órfão de tudo quanto amei
e perplexo amante de um recontro tenso
com o poema oculto no poema
em que, mais do que o amor, surpreendi a morte
com que, fora de mim, por dentro me revejo,
agora que, ungido pelo vazio, só mesmo a poesia
sobrevem. Triângulos escalenos trouxeram-me a este cais
e, tal como na infância, uns filhos da puta me rodeiam.

Não posso fazer mais que emocionar-me.


in Antecedentes Criminais Antologia Pessoal 1982-2007, V. N. de Famalicão, 2007



2 comentários:

  1. Olá Amadeu
    Nem tenho palavras para descrever o assombro que sinto perante o que escreve. Realmente é entre os grandes que se distinguem os maiores.
    Também gosto muito de escrever mas sei que nunca chegarei a este nível.
    De qualquer forma tenho pena que não tenha visitado o meu Blog. Quem sabe um dia me possa dar esse prazer!
    Um abraço
    MariaJB

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  2. Ainda volto pois gostaria de lhe perguntar se autoriza que eu publique no meu blog, com os devidos créditos, poemas seus?
    Muito obrigada
    MariaJB

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